O poeta Pablo Neruda é um dos nomes mais importantes e célebres da literatura latino-americana. Além da poesia, deixou um legado de boas histórias, afinal, era diplomata e costumava oferecer recepções e jantares em suas casas. Muitos desses encontros renderam anedotas que ecoam até hoje.
Uso casas no plural porque eram três refúgios no Chile, cada um com sua própria personalidade e papel na vida do poeta: La Chascona, no coração de Santiago; La Sebastiana, em Valparaíso; e Isla Negra, de frente para o Pacífico.
Em comum, todas têm uma arquitetura singular, marcada por elementos do mar, cores vivas e histórias que se desenrolavam ao redor da mesa. Relatos em entrevistas, diários e cartas lembram os jantares e festas que animavam as casas de Neruda. E o destino delas, como o do próprio poeta, acabou entrelaçado à turbulenta história política do Chile. Hoje, são centros culturais abertos à visitação.
Eu tive a oportunidade de conhecer as três e recomendo a quem for ao Chile reservar um tempo para visitá-las. São lugares únicos, cheios de detalhes, memórias e histórias, algumas das quais conto aqui agora para vocês.
LA SEBASTIANA
La Sebastiana, em Valparaíso, foi a que mais me emocionou, então, começo por ela. A predileção vem das histórias, da atmosfera interior e da belíssima vista para o porto. A casa transmite uma sensação quase flutuante, como se estivesse suspensa sobre o mar. Caminhar por seus aposentos e contemplar a mesa onde o poeta escrevia é uma experiência encantadora. É considerada a mais excêntrica das casas de Neruda.
“Sinto o cansaço de Santiago. Quero encontrar uma casinha em Valparaíso onde eu possa viver e escrever em paz. Ela precisa atender a certas condições. Não pode ser muito alta nem muito baixa. Precisa ser solitária, mas não muito. Vizinhos, de preferência invisíveis. Não devem ser vistos nem ouvidos. Original, mas não desconfortável. Muito espaçosa, mas firme. Nem muito grande nem muito pequena. Longe de tudo, mas perto de transporte. Independente, mas com comércio por perto. E também precisa ser muito barata. Você acha que consigo encontrar uma casa assim em Valparaíso?
O trecho acima é o pedido que Neruda dez para duas amigas, em 1959. A tarefa não era simples, mas elas conseguiram encontrar a casa sonhada. Entre a compra e a reforma, passaram-se três anos. Algumas janelas foram moldadas como claraboias de navio, um detalhe que traduz o fascínio do poeta pelo mar.
A inauguração foi realizada em 18 de setembro de 1961, naturalmente com uma festa memorável. Nela, Pablo Neruda apresentou uma “lista de conquistas inesquecíveis”, agradecendo a cada amigo que o ajudou desde o sonho inicial até a conclusão de La Sebastiana. O nome da casa é uma homenagem ao primeiro proprietário e construtor, o espanhol Sebastián Collado, que morreu deixando a obra inacabada.
La Sebastiana ganhou um poema, publicado no livro Plenos Poderes, uma ode à construção e aos sonhos que ela abriga. Se quiser ler o poema em espanhol, clique aqui para acessar a publicação da Universidade do Chile. Na primeira estrofe, o poeta já nos revela:
Eu estabeleci a casa.
Eu a fiz primeiro de ar.
Então eu levantei a bandeira no ar
e a deixei pendurada
do firmamento, da estrela, da
luz e da escuridão
La Sebastiana era o cenário das festas de fim de ano. Nessas ocasiões, Neruda entregava aos convidados um cardápio escrito em verde, com nomes inventados para os pratos, um gesto que misturava humor e rendia assunto por toda a festa.
Foi ali que o poeta celebrou seu último réveillon, na virada de 1972 para 1973. Poucos meses depois, o golpe militar mudaria o destino do Chile, e o da casa, que foi saqueada.
Em 1991, La Sebastiana foi restaurada e, em 1991, ganhou nova vida com a inauguração do Centro Cultural. Hoje, abriga coleções de mapas antigos, pinturas e objetos pessoais do poeta.
LA CHASCONA
A casa em Santiago começou a ser construída em 1953 para sua então amante Matilde Urrutia, que mais tarde se tornaria sua última esposa. O nome La Chascona era o apelido que o poeta lhe dava, por causa de seu abundante cabelo ruivo. A casa está situada no bairro Bellavista, aos pés do Cerro San Cristóbal, principal ponto turístico da capital chilena.
O arquiteto catalão Germán Arias foi encarregado de projetar a casa em um terreno íngreme e disse que não haveria alternativa a não ser os moradores subirem e descerem escadas. Inicialmente, ele planejou a casa de frente para o sol, com vista para a cidade, mas Neruda preferia a vista das montanhas e pediu que a planta fosse invertida. O poeta também trouxe troncos de cipreste do sul para a sala de estar, além de outros materiais e objetos. Ao final, o arquiteto comentou que a casa era mais criação de Neruda do que sua. A peculiaridade da residência está justamente nessa arquitetura irregular, moldada pelas ideias do poeta, com diversos anexos acrescentados ao longo dos anos.
No início, Matilde morou sozinha, enquanto Neruda ainda vivia com sua esposa Delia del Carril. Muitos amigos do poeta já conheciam o “segredo”. Entre as peças expostas na casa está o retrato que o artista mexicano Diego Rivera pintou de Matilde, com duas cabeças e, no olhar atento, é possível perceber o perfil de Neruda escondido.
Em 1955, Neruda se separou e mudou-se para La Chascona. Nos jantares que passou a oferecer em sua casa, colocava sempre à mesa um saleiro com a inscrição “morfina” e deixando-o à disposição dos convidados.
Da mesma forma que a casa em Valparaíso, La Chascona foi vandalizada logo após o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende. Pablo Neruda morreu poucos dias depois, em uma clínica na cidade. O canal de irrigação que ele havia construído para seu amado jardim foi bloqueado, inundando a casa. Com sua morte, Matilde insistiu que o sepultamento fosse realizado ali, e assim aconteceu, em meio a janelas quebradas e tábuas de madeira para permitir a passagem.
Matilde conseguiu reparar os danos e viveu na casa até sua morte, em 1985. Hoje, La Chascona funciona como museu, abrigando uma coleção de esculturas em madeira e diversas obras de arte. Para mim, a melhor parte é a sala de jantar, preservada com as louças e os talheres do poeta.
ISLA NEGRA
À beira-mar está sua casa preferida, segundo dizem. Isla Negra é uma casinha de pedra, no topo de uma encosta, que comprou nos anos 30. Ao retornar da Europa ao Chile, em 1937, Neruda procurou um lugar calmo para se dedicar ao seu livro Canto General. Em suas memórias, escreveu: “A costa selvagem da Ilha Negra, com o movimento tumultuado do oceano, permitiu-me dedicar-me apaixonadamente à empreitada”. O mar se tornaria um dos cenários míticos de sua poesia ao longo dos anos.
Isla Negra permaneceu como um espaço no qual o poeta se recolhia para escrever e onde produziu parte significativa de sua obra literária. Se as festas de final de ano eram na La Sebastiana, os feriados costumavam ser celebrados na Isla Negra. Algumas festas dadas na casa eram temáticas, e Neruda pedia para seus convidados vestirem fantasias.
Contudo, Isla Negra não é uma ilha. Trata-se de um balneário situado cerca de 70 km de Valparaíso e 100 km de Santiago. Relatos contam que a casa estava sempre aberta para visitas de última hora, por isso Neruda mantinha a mesa arrumada com espaço extra. Como as demais residências do poeta, Isla Negra reúne muitos elementos náuticos e objetos curiosos.
Entre eles, destaca-se o busto do aventureiro inglês Morgan, que Neruda dizia se parecer com Stalin. Segundo contava, o antiquário em Paris relutava em vender a peça, mas ao saber que ele era chileno perguntou se conhecia Pablo Neruda. Quando disse que sim, conseguiu levar o busto para casa.
O bar é decorado como um salão de navio e Neruda adorava preparar drinks elaborados para seus amigos, embora ele próprio consumisse quase que exclusivamente uísque escocês e vinho chileno. Há uma viga onde Neruda mandou gravar os nomes de amigos mortos, uma forma de participarem dos brindes. E gostava de servir vinho e água em taças coloridas.
As refeições em Isla Negra eram tipicamente chilenas, como sopa de congrio, peixe ensopado e torta de carne.
A tradutora e escritora norte-americana Suzanne Jill Levine escreveu, em 2015, o artigo “Ode to the Mango: My Dinners with Neruda”, um dos relatos pessoais mais belos sobre essas confraternizações. Ela narra um jantar em que o peixe foi servido inteiro, “com olho e tudo”, algo que a deixou surpresa. Mas foi a sobremesa que realmente ficou marcada: uma manga servida inteira, acompanhada de uma pequena faca. Ao notar sua expressão, Neruda se ofereceu para cortar a fruta. No fim do jantar, presenteou Suzanne com um exemplar autografado em caneta verde de seu livro Cem Poemas de Amor.
Neruda deixou Isla Negra em setembro de 1973, dias após o golpe de Estado. Partiu dali em uma ambulância rumo a Santiago, onde faleceu em uma clínica em 23 de setembro. Retornaria a Isla Negra apenas em 1992, quando os restos mortais dele e de Matilde foram transferidos para a propriedade. Um funeral foi realizado com todas as honras que merecia, concretizando o desejo expresso pelo poeta cinquenta anos antes em seu poema Disposiciones:
Camaradas, enterrem-me na Isla Negra
de frente para o mar que conheço
cada área áspera de pedras
e ondas que meus olhos perdidos
nunca mais verão